A volta do horário de almoço

A existência foi lacrada, se silenciou toda sorte de consistência, na mais profunda inércia. Não há relatividade, que resista a um bom viral. Na ponta da língua, com as armas certeiras da banalidade, se aprisionou o bom senso. Se fez da profundidade, uma prova de incapacidade. Se atesta, que se não se diz tudo em um minuto, não há nada dizer.

Na multiplicidade, da “viralização” e do engajamento, viralmente se silenciou o que antes era. Mudos, viciados nos cortes e na força enigmática das redes, pedimos socorro aos “coachs da existência”: mais uma solução, please! Sem saber ao certo, se é dia ou noite, hora de trabalho ou de vício, checo mais uma vez, minha resposta sem pergunta. Não há mais perguntas, por serem respondidas. Todas as respostas são oferecidas, prontamente, com a voracidade das dicas inúteis.

Tome um café solúvel, dissipe sua essência, a troco de sucumbir no vale dos deslumbrados ou empobrecidos. Poucos se fartam, de oferecer respostas inúteis, na ambivalência do tenha tudo resolvido, agora mesmo. São aqueles que donos da verdade, gritam no vale dos desesperados: “Se eu consegui, você também consegue!”. Na legião do desamparo, os pobres de si próprios, caem na armadilha, do que tudo posso. 

Se minha força de vontade, não sucumbir na minha procrastinação, vou criar o Tinder da existência. Conectar quem é, com quem é, não com quem apareça ser. Na cola do garimpo existencial, vale ouro não sucumbir. Resisti não me deleitar, no vale do deslumbre. Por mais que em alguns momentos, a onda da vaidade, regada num narcisismo sob medida, invada minhas ânsias de consumo e me perco, na solução mágica de não existir. 

Por hoje, acreditei no vídeo, que me disse ter “euzinha” uma síndrome inédita, validade por marcianos, que na verdade, sou um “eu” sem ser. Logo dei um Google no nome da minha doença inédita, que já conta com especialistas e mesmo uma farmácia que oferece o medicamento, para o que nunca tive. Fantástico, sem precisar saber de nada, sentado na minha mais pura paralisia, consegui me conectar. Com o delivery do meu medicamento existencial, suspirei dor dois segundos, me entupi da caixa toda e me dei conta que não passou, a dor da minha síndrome inédita.

Como agora, posso “euzinha”, viver assombrada pelo meu diagnóstico, feito pelo especialista, sem resposta ao medicamento “self-connection”. Novamente lançado no abismo, sem a solução pronta, busco mais um coach instantâneo. Prontamente encontro mais uma solução solúvel. Que se dissolva, toda minha existência, para viajar pelo verão europeu, ter gratidão e fazer um bico, próprio de quem tem budget para manter o preenchimento em dia. Minha vida agora necessita de um retiro espiritual, regado à champagne, devaneios e uma orgia respeitosa. Na espiral do viral, emagreço minha existência, faço bicos e viralizo. Já coaptada pela futilidade, dou gritos de alegria, sem nada mais sentir. Agora também sou coach. Pertenço ao time!

Na próxima semana, fora da rodada de bebedeiras, volto para o corpo da realidade. Encarcerada, no que não é fantasia. A orgia da vida real, se demonstra simples, ridiculamente sem brilho, mas cheia de verdade. No feitiço de não mais ter ilusão, no emudecimento dos coachs, surge uma novidade. 

Percebo que sem síndrome inédita, sem medicamento, caio na real. Sem viral, que dê jeito, o ar que respiro vai para os pulmões e não mais para Marte. Como ancorar os devaneios, sem me dissolver? Sem resposta pronta, pauso o tumulto, para me dar conta que não preciso mais de barulho. 

Então como fazer, sem mais ter a “Porta da Esperança” na minha timeline? Lavei o rosto, arriei minha existência para uma nova viagem e desliguei o vale do click. Sem mais um vírus que parasite minha existência, dei boas vindas ao desejo. 

Rio de Janeiro, 29 de agosto de 2024.   

 

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