Ouvi falar que existia um tempo do horário de almoço. Existiam refeições nas mesas e as pessoas até conversavam sobre algo, que não era produtivo. Bastava colocar a comida no prato, acomodar os talhares e mastigar. Acreditem, havia que se abrir a boca e sincronizar dentes, lábios, fechar a boca e conversar. Era mandatório não falar de boca aberta com a comida. Engolir para depois falar e aos poucos expressar alguma opinião, ou até mesmo algum comentário criado por conta própria.
Conta própria era ter sua ideia, encadear uma frase e endereçar dentro do contexto que se estava almoçando. Por exemplo, ali você devia falar sobre algo, aguardar um outro também falar, se fosse mais gente, ficavam intercalando falas e aí se entendiam, ou fingiam se entender e podiam até mesmo não concordar. Dependendo das pessoas, eram apenas gemidos, grunhidos e balançares de cabeça, mas se tinha um certo outro que se levava em conta.
Tudo ficou mais rápido quando cortaram as refeições. Foi liberado comer de boca aberta, permitindo que se mastigasse mais rápido. Também se criou os líquidos hiper proteicos que já adiantavam na velocidade da refeição. Tirou-se as mesas e desapareceram os outros. Para dar maior agilidade, os pedidos vinham pelos antigos aparelhos de celular que eram conectados a uma rede externa. Sim, existia um aparelho. Não era por telepatia que se comunicavam com o marketplace da existência.
Alguns mais fantasiosos, iam até em igrejas e templos. Logo fizeram rebanhos de empreendedores da própria fé. Se a fé que nos habita, medita, malha e come fit, investe num blindado e viaja para esquiar, ganha sua igreja própria e pode ferver hits de louvor. Os mais fervorosos, logo ganharam o destaque da disciplina e serviram de régua para os sem força de vontade. Havia uma perseguição para quem não usasse Whey Protein, tivesse massa magra suficiente para atravessar a longevidade e não ficasse com a pele bem lisinha aos 80 anos. Quem lesse um livro, falasse uma frase completa e expressasse autonomia das IAs eram pessoas esquisitas.
Todos migraram para sua própria plataforma digital, criaram uma língua de cada um, venderam seus produtos digitais para si próprios e se casaram consigo. A próxima leva, veio do In vitro por doação de algum banco de genes, no qual o preço era não voltar a ter horário de almoço.
Conversas sem objetivo, points sem bullet, o criar sem monetizar ficou outdated. A existência foi vendida e a privacidade não fez mais sentido. Todos se uniram para alimentar uma IA generativa que lhe desse o roteiro de si próprio. Foi difícil para alguns, mas sem muito tempo, era melhor não perder tempo existindo.
No lançamento do marketplace existencial foi loteada a odisseia humana em gatilho mental. Tudo agora precisava criar conexão, sem nenhum objetivo específico, apenas para deixar a pessoa refém das suas necessidades mais baixas. Na esteira de produtos aceitaram a ansiedade, depressão, os transtornos em geral, para poder abafar que não era mole aquela vida sem tempero.
Alheios a si próprio, investiram em fundos de petróleo e cobraram um mundo Instagramável. Com vários filtros, não mais mastigavam e foi preciso fechar a boca da geral. Com a cultura instantânea, não foi preciso se esforçar, nem estudar e muito menos ter alguma crise existencial. Era possível apenas perguntar qual era o futuro. Com a resposta padrão para todos, ninguém mais era diferente, com a igualdade na veia, não existia mais um outro.
Assustados queriam não mais ter a telepatia como forma de rede conectiva, voltar a comer, dormir e até mesmo desejar. Nem todos estavam vivos, a maioria apenas tinha feito adesão ao seu streaming particular, com um aplicativo para apitar que o coração está batendo e já está na hora de dormir.
Respiro fundo, lembro que tenho horário de almoço e vou ali pausar meus talhares. Sem pausar meus desejos, choro pelos mortos pelo caminho e sorrio para o outro que sorri quando falo uma besteira qualquer. Fico na dúvida, se assino meu on demand existencial, mas prefiro adiar para um almoço futuro.
Rio de Janeiro, 13 de março de 2024.