O legado de Daniel Kahneman e as fronteiras éticas da decisão racional – um olhar clínico
Em 27 de março de 2024, a comunidade mundial foi informada sobre a morte de Daniel Kahneman, proeminente psicólogo, laureado em 2002 com o prêmio Nobel em economia, que com suas pesquisas sobre vieses na tomada de decisão, contribuiu para fundar o campo da economia comportamental. Em março de 2025, um ano após sua morte, o jornalista Jason Zweig revelou no Wall Street Journal que Kahneman recorreu ao suicídio assistido na Suíça. Descreveu o contexto dos e-mails de despedida aos amigos íntimos e familiares, em que Kahneman anunciava sua decisão por morrer aos 90 anos em decorrência do declínio em sua saúde – física e mental.
Ao longo de sua trajetória, Kahneman revolucionou a compreensão da tomada de decisão sob incerteza, demonstrando que as pessoas recorrem a heurísticas — atalhos mentais — que podem levar a erros sistemáticos. Ele identificou padrões previsíveis no comportamento financeiro, como a preferência por ganhos garantidos (efeito da certeza), a busca por risco para evitar perdas (efeito de reflexo) e a distorção da percepção de probabilidades. Em Rápido e Devagar (2011), descreveu dois sistemas mentais: um intuitivo e veloz, baseado em heurísticas, e outro analítico e deliberado. Suas contribuições ajudaram a explicar bolhas financeiras, inconsistências no consumo e falhas de mercado, evidenciando o impacto dos vieses cognitivos nas decisões impulsivas. Além disso, sua teoria do bem-estar experimental revelou que a memória das experiências é influenciada pelo momento mais intenso e pelo desfecho, moldando por exemplo, políticas públicas no Reino Unido e modelos de satisfação do cliente em diversas indústrias.
Ao decidir sobre seu momento final de vida, Kahneman provocou algumas discussões na comunidade internacional quanto a sua própria decisão final. Ao deliberar sobre um suicídio assistido – acompanhado de um profissional de saúde, em que o próprio paciente ou familiar administra o medicamento letal, suscitou debates sobre o papel da racionalidade na decisão de terminar a própria vida, contrapondo-se às nuances da subjetividade humana. Em alguns cenários sua decisão foi exaltada como uma expressão máxima de capacidade quanto à tomada de decisão, enquanto, em outros contextos ter deliberado sobre sua própria morte suscitou questões quanto a ele próprio estar enviesado por seu julgamento emocional.
Como a vida psíquica de alguém é de foro íntimo, com nuances que mesmo os mais próximos, não conseguem delimitar por completo, não se é possível circunscrever se as variáveis de análise que determinaram a decisão final de Kahneman foi “precisa” dentro do seu próprio sistema de valores. Na psiquiatria, o exame do prejuízo da tomada de decisão é detalhado para contextualizar como o indivíduo se organiza para suas etapas do pensamento até à execução de uma tarefa, assim como, se suas ações revelam um nível de descontrole que compromete se orientar para construções mais consistentes. A psiquiatria avalia tanto dificuldades evidentes, como a incapacidade de interromper o uso de substâncias nocivas, quanto aspectos mais sutis, como os pensamentos ruminantes da depressão que distorcem o julgamento.
No limite excruciante da dor emocional, com uma força que limita o sujeito a ter perspectiva, emerge a vontade de se auto exterminar. Diante desta clínica do desamparo e dor emocional, o psiquiatra assume o papel não somente médico da prescrição de medicamentos, mas de alinhar cuidados que preservem aquele sujeito de si próprio, sendo uma barreira de proteção até que o indivíduo se recupere dentro de si mesmo. Cabe ao psiquiatra, identificar o risco do desfecho fatal, as variáveis que são de ameaça, bem como as protetivas. Contextos de maior conexão social, alicerçados em laços afetivos mais sólidos, facilitam a negociação em prol da vida. A falta de pertencimento social dificulta o compromisso consigo mesmo, mas pode ser reconstruída por meio da ressignificação do contexto.
Contudo, por mais que o avanço científico nos proporcione uma melhor detecção dos quadros psiquiátricos, tratamentos melhor estabelecidos, maior conscientização quanto à dimensão emocional de nossas vivências, nada supera o massacre do viés cognitivo da igualdade algorítmica. Cercados por pistas de como deve ser feito, muitos estão confundindo padrões de consumo, como referência para orientarem suas vidas. Na cultura digital pós-moderna, sumiram os referenciais de limite para uma dinâmica do tudo é possível, lançando os indivíduos em impulsos que os fazem afogar na desilusão. No piloto automático, a própria existência se transformou num perigoso viés de performance, condicionando muitos ao atalho mental de comprar a felicidade, experimentando apenas escolhas que satisfaçam seu sistema de pensamento rápido. Nesta avalanche de informações, apagamento das referências afetivas, emerge o sujeito viral. Não se trata de um diagnóstico psiquiátrico, mas de uma multidão que se ancora numa forma de existência automática, padronizada, em que as escolhas são direcionadas para fazer “impressão” na sua “bolha digital”.
Não é surpreendente, que a vida assuma o valor vazio, e que passemos a discutir clínicas do fim da vida em alguns países nos quais o suicídio assistido é legalmente possível, dentro do contexto da psiquiatria. Com uma demanda crescente, num mercado promissor. Saudosamente me ancoro, com uma profunda estima, no fascinante encontro com singularidades que o meu trabalho proporciona. Diante da interface entre as evidências da ciência psiquiátrica, a neurobiologia, e tudo mais que as evidências nos capacita, nada resiste ao encanto da existência humana. Sem respostas prontas, cada um sabe de si, mas há de se cuidar daqueles que ainda não são donos de si próprios.
Maria Francisca Mauro – psiquiatra com experiência clínica em saúde mental corporativa, mestre e doutora em psiquiatria pela UFRJ.
Rio de Janeiro, 27 de março de 2025.