Como num sonho, ou melhor pesadelo, melhor dizendo devaneio, ou seria mesmo uma epifania? Como não podemos descartar nada hoje em dia para poder ser sustentável vamos com o bonde todo.
Dias de isolamento, sonhos de ficar sem máscara e tomar vacina. Promessas de toda sorte e generosidade para cada entregador do IFOOD. Como posso ser tão privilegiada e iluminada, com casa, comida, Wi-Fi 5G e sonhos da epopeia digital. A cada link, webinar e mais um pouco de Zoom, se descortina um mundo. Frisson. Insônia e angústia produtiva. Não basta estar online. Será necessário desnudar toda sorte de conhecimento. Sonho com os cursos, diversas plataformas e de repente quando me dou conta já não me lembro do sonho. O despertador chama sem piedade, ou sem a classe do velho galo.
O galo já tão afamado no tempo das galinhas, não tem mais prestígio. Os ovos são da caixa e o poleiro é a bancada do supermercado. Sem emoção olho o rótulo. Aqui diz que é orgânico. Deve ser de boas galinhas. Sigo pela horta sem terra e o caixa sem caixa. Autoatendimento é o mote da vida. Nos “auto conversamos” com fones que já se encaixam como se fossem um amigo, playlists de todo gênero, do cis ao trans, sem deixar de lado o ainda a declarar. Com streamings sem ordem, com a liberdade vazia vagamos pelo que nos é sugerido. Interessante que nem preciso escolher, pensar, ou decidir, rapidamente sou surpreendido por uma nova mensagem, uma nova “notificação” que vai cercando toda sorte daquele prazer que rege a ausência. Pesadelo ou vigilância? Escolha ou indução?
Na dúvida prefiro o devaneio. Está declarado que o melhor é seguir ignorando a vida lá fora. Na nuvem cabe tudo e não se tem nada. Flutuam os dados reservados em supercomputadores. As artes digitais já denunciam a morte da emoção e a comoção anda fora de moda. Torci pela vacina, até mais que para futebol no último ano. Elas vieram a rodo, com toda sorte e nome, um verdadeiro “marketplace” vacinal.
Fiquei todo contente, entre aguardar a resignação de ser brasileiro na fila, ou logo me enfiar na executiva rumo a Miami, com uns dias por Tulum. Viva o SUS, viva a Vacina, mas me deixa carimbar logo meu passaporte. Ponderei e achei de bom tom aguardar minha vez. Todos no grupo de família estavam criticando os que estavam “abandonando” o barco para correr atrás de sua Janssen da Flórida. Preferi ficar na minha. Afinal vinha mandando bem na pandemia e não era justo na vacina que ia fazer feio.
Esperei alguns meses e nada, até meu porteiro hipertenso, diabético e todo cheio de problemas de saúde tinha vacinado. Aquela situação já estava insustentável. Como assim? Uma fila sem prioridades? Havia de ter algum Personallité para chamar de meu. Em busca da igualdade descobri em esquema. Finalmente, Brasil sendo não Brasil. Aí minha vacinação saiu meio que de forma um pouco mais acelerada.
Fiquei um pouco triste, pois não pude postar nada. Com certeza sempre tem aqueles fiscais justiceiros, que ficam cheio de máscara e se lambuzam no álcool gel. Melhor ser discreto quando não se está dentro da legitimidade. Finalmente, aglomeração vacinal e toda sorte de liberdade.
Com poucas semanas de alegria, se abateu a incerteza da variante. Os tambores já não estavam tão estridentes e alguns da família recuaram da nossa agenda social. Optei por manter meu calendário social, com uma maior discrição e de forma não divulgada. Oásis sociais, alegria vibrante, exageros para compensar, ressacas daquelas que não se consegue em casa. Reencontrei meu Brasil brasileiro.
Existe agora uma fila de prioridades que já estou tomando nota. Vou reclamar para o cara da vacina o esquema da terceira dose, pois não é justo recuar nos meus sonhos. Com o dinheiro que venho ganhando não tem como ficar sem alegria. Difícil mesmo comemorar algo por aqui neste país. Muita corrupção e toda essa politicagem que não vale nada. Melhor lugar do Rio é o Galeão. Acho que vou aproveitar minha cidadania portuguesa para ir de vez. Não tolero mais pagar importo. Se bem que consigo muitos
jeitinhos.
Quero mesmo é poder ter tranquilidade, sair deste lugar que só tem gente desonesta e corrupta. A desigualdade me incomoda e tenho sentido muito desconforto em andar aqui pelo Leblon. Quanta pobreza. Aí vou pegar o Uber para o clube e não tem carro. Difícil esse povo não querer trabalhar. Vou precisar ir com meu motorista.
Semana que vem na Festa da Independência já separei minha bandeira, camisa da seleção e vou pra rua. Um povo não pode se silenciar perante o que está acontecendo.
Viva a Independência do Brasil, são 200 anos de uma história que ainda precisamos nos aprofundar sem que afundemos no umbigo de cada um. Por favor, qual fila entro para ser brasileiro?
Rio de Janeiro, 02 de setembro de 2021.
Cuidado, o texto tem tons de inverdades com pitadas de ironia e mesmo escárnio. Sem fundo moral, ou disciplinador, mas tão somente reflexivo. Leia com moderação!