Na pandemia que houve

Ainda estou a procurar nas prateleiras o termômetro do medo, ainda sem medida de febre, como vou saber se estou na medida certa para a realidade que vivo. Sem medida, vejo nos jornais que ainda há morte. Nas esquinas, percebi uma maior desigualdade, o tal vulgo mendigo, pede um olhar e respiramos profundo sem saber se nos falta a coragem para encarar que nem todos estão no frenesi da bolsa.

Imunidade cruzada, rebanho, celular, telepática

Seguimos a deriva da realidade, meio que fortes para driblar a insuficiência de não poder sentir o alívio profundo, mas contentes do que pode ser o suficiente. E ali onde mora o otimismo, sentimos que vencemos o medo. O que já se sabe é que não houve final e parece que o enredo que vivemos está meio condicionado a estarmos imunizados. Agora a grande dúvida: ao que queremos estar imunes?

Podemos escolher estar imunes a realidade, a dor, a desigualdade social, ao desconforto de não termos acesso a coisas que nos trazem prazer, ou simplesmente de forma individual se saturar de aguardar e seguir adiante. Cada um está sobrevivendo como consegue, alguns de máscara, outros já bradam por um carnaval prolongado em que agora já é hora de retomar a vida. Independentemente da escolha, uma certeza, não se tem uma resposta única para abarcar todas as realidades. No entanto, apenas uma resposta para não embarcar na barca da antiutopia: coerência.

Camarote da virtude

Ser coerente num momento deste, não é emplacar certezas e ser o porteiro da ética, mas se debruçar sobre suas próprias fragilidades e necessidades para poder ser o guardião das suas decisões. Mediante a necessidade, a coerência e a ética, pode auxiliar decisões de fazer ou não determinada ação. Talvez com esta ponderação pode-se ficar menos passível de negar por completo a realidade – fingir que já era pandemia e estou imune ao meu medo ou mesmo simplesmente, estou alheio a tudo.

Ainda cercado, vislumbro minha conexão e me deixo divagar pelo que vejo lá fora. Com hesitação, alguns choram por sentirem que a barca do novo normal mais solidário e empático está atrasada. Segue correndo que a barca da sobrevivência está partindo e talvez precisemos nos espremer nela mesmo. Alguns de cabeça erguida, sustentam o triunfo de um sorriso completo – vejo seus dentes e fico ali de forma aturdida querendo dizer: “Ei, cuidado que a prepotência tem armadilhas para os que não creem!”. Puxo o ar que me cabe, sinto na máscara molhada uma dignidade por persistir e sinto uma náusea.

Por favor, quero um ponto final

Será que a vertigem vai passar quando tirar a máscara? Ou será porque ainda não consegui me livrar das notícias. Que raiva tenho da televisão que insiste nos assuntos da morte, política ou os dois juntos. Quero meu anúncio da retomada da economia e as pessoas circulando. Mesmo que com os bolsos vazios, tem-se um charme em dizer: “Desculpa, peguei um trânsito”! Olha ali o engarrafamento nos acenando e a velocidade da vida nos defrontando que já estamos na rua, já ocupamos as calçadas, mas ainda persiste aquela náusea de que não podemos negligenciar que precisamos ter coerência.

Des-ILUSÃO: Danço eu, dança você..

Com alívio achei o meu termômetro do medo, pedi logo dois. Acho que tem dias que a coragem me invade com a prepotência da indiferença. Aí falo com meus amigos mais receosos para conseguir calibrar minha medida. Já em outros dias pego logo a carona dos meus amigos incautos – respiro com eles o ar do otimismo. E assim vou medindo minha coerência…será que já consigo um termômetro para ela? Felizes são os que acreditaram no papel higiênico, no álcool gel e na dispensa cheia para se bastarem.

Rio de Janeiro, 19 de agosto de 2020.

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